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Recorte: Breve ensaio sobre o afeto

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*Por Talita Guimarães

Afeto é atravessamento insondável, que nos arrodeia e arrebata quando menos esperamos. Tira-nos do lugar de conforto para transportar-nos não raro para territórios de incredulidade e comoção. Penso que é das forças da vida, a que mais nos ensina sobre nós, humanos. 

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Arte: Talita Guimarães

Mais de uma vez esse ano fomos tomados de assalto por notícias tão surreais que testaram nosso pressuposto senso de realidade. Enquanto a política nos choca, indigna e divide, o esporte e a arte que tanto nos alegram são também quem nos põem tristes e nos comovem, colocando-nos diante de experiências de comoção coletiva em que ao mesmo tempo sofremos e nos emocionamos com os gestos de solidariedade e empatia que florescem entre nós. O ser humano, quando submetido a um choque de realidade acerca de sua finitude, redescobre como ser humano. 

Amanheço a terça-feira (29/11/2016) com a trágica notícia da queda do avião que transportava a delegação do clube de futebol Chapecoense. Leio a lista de pessoas a bordo e choro com as fotos sorridentes usadas para ilustrar os perfis das vítimas fatais. Profissionais da imprensa de crachá, jovens como eu posando com seus bonsais, jornalistas experientes em seus locais de trabalho, atletas em campo.  

Faço coro nas redes sociais a quem, como eu, declara estar emocionado com as medidas solidárias que não param de chegar de outros clubes e instituições. Não são meras notas de pesares. São gestos concretos como ceder atletas, doar recursos, colocar-se a disposição, abrir mão do título, incentivar o reconhecimento dos atletas do clube independente de para qual time você torce.  

E a reação vai além, rapidamente uma mobilização para que as pessoas não compartilhem fotos das vítimas no local do acidente toma conta da rede e o que eu mais vejo são pessoas tomando a frente de combate pela predominância do respeito. Afinal, pedir que as pessoas não façam algo ruim antes que elas sequer tenham chance de fazer é também impedir que aconteça.  

Quando um conhecido site despeja uma série de textos infelizes e insensíveis ao momento alegando estar fazendo jornalismo, os internautas não só criticam como deixam de seguir as páginas da publicação, reduzindo drasticamente sua audiência e obrigando sua equipe a uma imediata retratação. Oxalá uma reformulação da abordagem de seu conteúdo. 

Para além da consciência coletiva, a consternação que nos aplaca neste dia me lembra em muito a sentida quando o ator Domingos Montagner faleceu, há alguns meses, pouco antes de se despedir de seu personagem Santo na épica novela Velho Chico. A partida precoce e repentina bate naquele mesmo lugar de incompreensão que nos afeta quando algo inesperado rompe com a realidade prevista 

E se falar assim de afeto parece evocar apenas o olhar amoroso que somos capazes de derramar sob o mundo quando algo nos comove, penso que ser atravessado por experiências de vida nos ensina sobre o que somos capazes de sentir e fazer. Abre-nos caminhoscujos graus de dignidade somos nós quem devemos avaliar e distinguir. 

Esse estar afetivo que nos leva por um caminho de empatia, nos ajuda a estar nos espaços de convívio de forma gentil, interessados em aprender e aprimorar gestos de tolerância. Creio que é o que nos encaminha para construção de sentidos mais largos sobre o tempo e o espaço que ocupamos. E embora no discurso soe bonito, a prática é suada, árdua e envolve disposição, tentativa e humildade.  

Diante de certos fatos e atitudes, sabemos, é difícil demonstrar simpatia ao sermos provocados em lugarzinhos dentro de nós que se contrariam profundamente com o observado. Quando a premissa do “gentileza gera gentileza” é acrescida da ideia de que “outras coisas geram outras coisas” corremos o risco de sucumbiao que há de pior. E me entristeço por me ver em situações em que um ódio crescente é ativado em mim, quando profundamente afetada pelo que me incomoda, contraria, indigna, desrespeita. Porque sim, estamos todos suscetíveis a sermos afetados tanto para o bem quanto para mal. Faz parte de ser organismo vivo, humano, sofrer e reagir.  

Por tudo isso, penso que precisamos ser ainda mais “ferozmente sensíveis”, como diria Affonso Romano de Sant’Anna em seu “Tempo de delicadeza”, para lidarmos com essa névoa sombria que se adensa ao nosso redor e não raro nos toma a mente e o coração. 

Se não há como sentir amor diante de tantas atitudes odientas e repulsivas, que tenhamos ao menos a dignidade humana de nos sentirmos afetados pela travessia desse tempo, que nos coloca uns contra os outros, que nos instiga a perder as estribeiras testando nossos limites de civilidade. Mas que também, felizmente, nos convida a sermos melhores, ao nos dar a chance de descobrir quem queremos ser.

Afinal, é quando mais somos provocados a reagir, que estamos sendo desafiados a revelar quem somos. E o afeto está aí para nos ajudar nisso. 


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