*Por Meiri Farias
A palavra Tabu tem várias definições, algumas vezes complementares, outras contraditórias entre elas. Tabu tem a ver com algum tipo de pudor. Aquele tema da qual não se fala, se cochicha. Nas definições denotativas de Tabu, há sempre uma relação com religião ou crença:
[Etnografia] Instituição religiosa que, atribuindo caráter sagrado a um objeto ou a um ser, proíbe qualquer contato com eles e até mesmo referência a eles.
[Adjetivo] Sobre algo ou alguém que não se pode tocar. Que não se pode fazer uso, dizer, comentar por crença, religião, fé, pudor, respeito etc.: palavras tabus.
(Dicio.con)
Mas o que todas as definições apresentam, é um caráter de proibição, seja legal ou cultural. Algo a margem, que a “decência” ou os “bons costumes” não permite acessar. E é nessa atmosfera que se passam as três histórias da coletânea Tabu, publicada pela editora Mino em 2019, com HQs Juízo, de Amanda Miranda, Cina, de Lalo e Piracema, de Jéssica Groke.
O tabu em Tabu começa quando tentamos acessar os quadrinhos. Os três volumes são vendidos envoltos em uma embalagem preta que não é aberta com facilidade. É necessário literalmente rasgar o plástico para chegar ao conteúdo. Para o colecionador de quadrinhos, que geralmente tem um cuidado com suas edições que beira a paranoia, a ideia de rasgar algo dá calafrios. Mesmo entendendo a proposta (e achando brilhante) senti uma sensação engraçada de culpa ao rasgar a embalagem, até olhava para os lados preocupada, temendo involuntariamente ser mal interpretada. É um bom “prólogo”, que choca o leitor e cria uma expectativa muito interessante para iniciar a leitura. Ao quebrar um primeiro “tabu”, você está quase pronto para lidar com os próximos.
É um movimento interessante das editoras de criar uma atmosfera a partir de soluções gráficas criativas, fazendo com que a experiência da leitura ganhe uma dimensão multissensorial. Um bom exemplo é a editora Lote 42 geralmente apresenta edições assim, como por exemplo o livro “Queria ter ficado mais”, que reúne histórias de mulheres em diferentes cidades do mundo e é formado por vários envelopes, exatamente como cartinhas dessas mulheres. A Mino tem apresentado um trabalho gráfico caprichado desde o início da editora em 2014, mas foi inovadora com Tabu ao promover esse diálogo com conteúdo desde a embalagem.
A outra boa aposta é apresentar o trabalho de três artistas muito promissoras com estilos muito diferentes, mas que dialogam involuntariamente no resultado final. Do horror urbano de Amanda (prêmio Dente de Ouro 2019 com o independente Hibernáculo), passando pelos cenários casualmente desconfortáveis de Lalo até os grafites fluídos e imersivos de Jéssica Groke (prêmio 31º HQ Mix em 2019 na categoria Novo Talento – Roteirista com Me Leve Quando Sair), as três histórias são completas individualmente e funcionam separadas, mas juntas fortalecem o tema e costuram um novo olhar para a noção de tabu. Principalmente por tratarem de temas extremamente delicados – até perigosos, se não fosse a responsabilidade e cuidado das artistas – com atenção e respeito.
Apenas uma extração dentária. Só uma viagem ordinária de duas amigas para um sítio escondido. Nada mais do que um jantar com uma colega. Três livros. Vasculhar por baixo dos panos do cotidiano é encontrar os obscuros segredos que tecem a nossa verdadeira realidade. Tabus. As jovens autoras AMANDA MIRANDA, LALO e JÉSSICA GROKE se embrenham no tenso terreno de três dos maiores tabus de nossa sociedade para de lá saírem com histórias maduras, impactantes e cuidadosamente construídas. Uma coleção incômoda para um tempo de disfarces e mentiras. (Sinopse oficial no site da editora Mino)
[[ALERTA DE SPOILER]]
Juízo
Amanda Miranda constrói uma narrativa surpreendente sobre um tema, embora já seja mais discutido que os dois outros temas da coletânea, ainda é um tabu. A artista conta uma história enquanto vai mostrando outra. Ao ler desavisada, leva-se um tempo para descobrir exatamente qual é o tabu, mas na (e imprescindível) segunda leitura, é possível perceber que a autora deixou dicas o tempo inteiro do que estava falando.
A princípio acompanhamos a narrativa da personagem que se encaminha para o “dentista”, enquanto explica sobre o nascimento do dente do siso (o dente do juízo). Enquanto vai narrando seu desconforto, já é possível perceber que há algo mais. Por que a personagem está fazendo um deposito no banco antes de ir ao dentista? Que contagens que não batem? Esse inchaço e o mal-estar foram causados pelo dente? Ué, essa cadeira não parece de dentista… Para além do que é dito literalmente, há evidências simbólicas pela arte que só confirmam e intensificam o desconforto, como a página que exibe diversos cabides pelo chão.
Em Juízo, a personagem usa a “desculpa” de uma extração do dente falar sobre aborto. Porém, Amanda apresenta uma personagem que foge do estereótipo que geralmente descreve personagens nessas condições na ficção. A protagonista de Juízo não é uma adolescente grávida ou alguém em condições de vulnerabilidade econômica. A própria personagem enumera suas conquistas “Formatura, casamento, família, escritório na Faria Lima” para descrever como não imaginava que passaria por uma situação como essa. O crucifixo no pescoço e o uniforme da filha, provavelmente de escola católica, também ajudam a localizar a personagem como alguém que facilmente seria chamada de “gente de bem”.
Para além da arte certeira e perturbadora de Amanda, que é muito eficiente em intensificar o nosso desconforto e localiza a história muito bem entre algo concreto e substancial como a cidade de São Paulo (com seus edifícios e todo o caos), mas também elementos metafóricos que te atiram em uma viagem pelo horror gráfico, a autora apresenta um roteiro muito inteligente, principalmente a explorar a organização geracional das mulheres da família, as características que se repetem, a relação com a mãe, irmã e a filha e a personagem se vê repetindo padrões dessas mulheres. “Meu rosto está marcado por todas as vezes que forcei a feição de minha mãe”. A conclusão da história fecha um ciclo macabro e expressa outra vez a sensação de inevitabilidade na vida da mulher.
Piracema
Piracema, “saída de peixe” em tupi-guarani, é o nome dado o movimento migratório dos peixes durante o período de reprodução. Na HQ a escolha do título traz uma atmosfera de descoberta muito intensa. O tema escolhido pela Jéssica Groke para a sua HQ é o mais inesperado: falar sobre descoberta na sexualidade na infância talvez seja o tabu mais literalmente “tabu” da coletânea. Não estamos acostumados a ver a descoberta do corpo feminino retratado, principalmente de forma tão delicada e imersiva.
Ao retratar uma garota (provavelmente no início da transição da infância para a puberdade) explorando alegoricamente as possibilidades do próprio corpo, mas sem sexualizar a infância, Jéssica ousa ainda mais com a sugestão da projeção do desejo da garota na figura de própria prima. As diferenças e semelhanças entre as meninas são aspectos interessantes na obra. Enquanto a protagonista demonstra timidez, desconforto, uma certa sensação de repressão (mesmo na interação com a própria mãe há uma atmosfera de sufocamento), a prima é livre e mais desinibida. Ao mesmo tempo, a semelhança física entre as garotas, principalmente no quadro onde a garota acorda a prima, gera quase um “espelhamento” dessas personagens.
O aspecto onírico da história é embalado pela fluidez da arte de Jéssica. A falta de requadro faz com que a narrativa deslize pelas páginas, mas longe de uma imaterialidade etérea, a arte vem do grafite é marcada e expressiva. Apesar da metáfora, a história não fica no mundo das ideias. É sensação, é corpo.
Cina
Ao ler a HQ de Lalo, é impossível não associar Cina, nome da personagem principal e título da história, a palavra sina. Se “sina” tem o sentido de destino, algo inevitável, talvez morte, aqui nessa história, Cina também vem com o mesmo significado.
A morte é um tema tratado a exaustão pela arte, mas essa perspectiva é bem rara. Estamos acostumados a ver o medo da morte retratado, a dor, a preocupação, a fatalidade. Lalo apresenta uma personagem que anseia a própria morte, que quer resolver essa “inevitabilidade” em seus próprios termos. A nossa dificuldade de lidar com a morte – em uma perspectiva de herança da cultura ocidental cristã – faz com que a leitura seja ainda mais inesperada. A maior surpresa é um olhar da personagem para o suicídio não com a necessidade de dar fim a uma dor, mas como uma ânsia de descoberta
A arte da Lalo também é muito interessante. O tempo e o espaço são muito bem marcados, principalmente em quadros onde as personagens não aparecem. Um prato de comida, uma garrafa de vinho, o café, a gôndola do supermercado. Uma sucessão de pequenas coisas banais e conhecidas enquanto a personagem ruma para o desconhecido. Ao mesmo tempo que demonstram certa normalidade, cotidiano, há sempre uma tensão sob superfície.
Meiri Farias
Café, música e quadrinhos são combustíveis para o que você encontra aqui. Jornalista especialista em Mídia, Informação e Cultura, com experiência em programação não-linear (VoD), produção de conteúdo e comunicação coorporativa, Meiri Farias é paulistana convicta e contraditória, latino-americana em descoberta e adora falar sobre isso. Tomando café, obviamente.