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O rei está nu ou toda nudez será castigada

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*Por Beatriz Farias

CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: Esse texto não é indicado para família tradicional brasileira

Você vai dizer que não vale a pena comentar o assunto mais uma vez. Eu mesma já tinha evitado de falar a respeito. Mas o que veio em seguida foi o anuncio da nova exposição do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) sobre a história da sexualidade, onde abordará mais de 200 representações do tema em diferentes períodos e técnicas artísticas e a única certeza que resta é que o assunto vai voltar. E aí vale destacar que o assunto vai voltar também porque nunca vai embora de verdade, porque em pleno século XXI, por mais que tentemos juntar a sujeira e todo “tabu” difícil de tratar para debaixo do tapete, uma hora ele volta. E ultimamente não tem tardado. Então pensei que os comentários de Facebook não estão dando conta da complexidade do assunto, embora sejam importantes para suscitar um debate onde superficialmente todos digitam (ainda que na maioria das vezes ninguém se leia de verdade).

Vamos aos fatos: No dia 26, última terça-feira de setembro, a performance “La bête” foi apresentada pelo artista Wagner Schwartz na abertura do 35º Panorama de Arte Brasileira, localizado no Museu de Arte Moderna, MAM, em São Paulo. A principal polêmica tem como foco um vídeo gravado no dia, onde uma criança de 4 anos aparece ao lado de sua mãe tocando a perna do artista, que se encontrava nu, deitado no chão.

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Foto: Divulgação

A performance, que estava sinalizada com a informação de nudez artística e classificação indicativa, de acordo com o protocolo do museu de informar aos visitantes quanto a assuntos mais delicados como este, foi vítima de protestos que resultaram em ameaças anônimas e agressões físicas a funcionários do museu, assim como a mãe da garota, acusada de irresponsável e incapaz de cuidar de sua filha. A família tradicional brasileira que veementemente aponta o dedo nos “vândalos” de manifestação, não se conteve desta vez.

Inspirada na série de esculturas “Bichos”, da artista Lygia Clark, o trabalho “La bête” segue o mesmo pressuposto de relação e manipulação dos objetos pelo público, como sugere a obra de inspiração para o projeto. A diferença entre elas é que o objeto agora é o corpo.

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Foto: Divulgação

Como um dos grandes problemas do acontecimento está diretamente relacionado com a dificuldade de entendimento de todas as suas camadas, vamos esmiuçar os cenários do ocorrido.

Uma criança e um corpo nu de um adulto.

A criança é exposta ao nu.

Agora sigamos pelo princípio mais básico: todos nascemos com corpo. Essa é a nossa condição até o momento. Como ainda não é possível não nascer com um corpo e estar no mundo, o primeiro pressuposto básico é de aceitar a existência desse corpo.

O próximo passo vem da reflexão: nós não nascemos com medo do nosso corpo nem de qualquer outro. Nós não nascemos acreditando que estar com as genitálias a mostra indica algo mais além de estar com as genitálias a mostra. Já que o pensamento não nasce formado, ele é criado em algum momento.

“Quando a gente não tem filhos e as coisas acontecem na vida dos outros a gente acha legal, mas imagine sua filha alisando um homem pelado”. Foi o que disse um dos argumentos dirigidos a mim por um conhecido quando me dispus a falar a primeiro momento a respeito do tema.

Os estudos acima foram realizados em uma universidade católica que, claramente tenta empregar uma ditadura nuzística através do argumento disfarçado de aulas com a presença de modelo vivo

Primeiramente, não tenho interesse em ter filhos (ponto para algo que será usado contra mim logo menos), embora imaginar minha filha alisando um homem pelado pode se tratar de qualquer coisa. Mas já que me foi proposto, posso supor, de maneira similar a mãe do vídeo, que gostaria de criar minha filha para que ela soubesse que passar a mão no corpo daquele homem durante a exposição não tinha absolutamente nenhuma relação com a conotação sexual que lhe foi sugerida. O que nos leva a pensar ainda, amigos, é que esse temor tão grande em ver sua filha “alisando um homem pelado”, provém de um comentário feito por alguém que olha um homem pelado e só imagina o sexo e sua via profana.

Por que soa mais interessante criar novas pessoas para temerem os corpos ao invés de entenderem que eles existem, e o mal a ser temido é a ignorância e negligência, raiz de todos os outros males? “Porque nem todas as crianças vão ser ensinadas assim, e então eu deixo a minha vulnerável”, vem a ser a resposta mais óbvia e global, e a ela meu próximo argumento espanta: parabéns, você acabou de dizer que a culpa é da vítima.

Para concluir o bloco de pensamento, vamos ao choque: você não deixaria sua filha chegar perto desse corpo porque é você que olha para esse corpo com conotação sexual. Talvez porque você tenha sito criado(a) assim, talvez porque nossa sociedade se estruture na hipersexualização dos corpos, mas quando você compreende a maldade em um corpo que não está transmitindo ou recebendo estímulos sexuais, essa maldade é sua, responsabilize-se por ela. Foi você quem viu o erro do corpo, não sua filha, não o artista. E saiba que a partir do momento que esse peso é colocado sobre a criança, você cria no mundo mais um intenso potencial de estuprador e um potencial de vítima.

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“Arte é tudo menos isso”, foi a outra resposta acusatória utilizada como definição do conteúdo aqui tratado. Senhoras e senhores, essa não é a primeira, não é a segunda nem vem a ser a terceira vez que faço esse questionamento, mas vamos a ele: o que é, então, a arte? Quem foi que disse o que é a arte e quem disse o que não é, para ser assim um conceito tão fixo e científico que não possa ser ultrapassado ou repensado?

E aqui me aproveito para fazer um parêntese que a tanto já serve como resposta para outros casos onde a opinião pessoal é fonte de argumento contra o coletivo. Se você não gosta de algo, se de alguma maneira isso vai contra a sua individualidade, não consuma. Se é um artista e não gosta, se não concorda, não reproduza – muito embora grande importância da arte seja sua capacidade de romper paradigmas e levantar questões, algo que não pode acontecer quando o indivíduo está fechado para a mudança de pensamento -. Agora lutar pela repressão é ir contra o princípio mais básico da liberdade de expressão, esse mesmo pelo qual você ainda pode gostar ou não de algo e manifestar isso “““abertamente””” (não sejamos tão ingênuos assim, também).

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“A criação de Adão”, Michelangelo – Porque já faz um tempo que a arte está nua

“Mas não podemos confundir a pedofilia com arte”, ouvi também e concordo totalmente. É imprescindível termos os olhos abertos contra a pedofilia, contra o racismo, contra o machismo e etc., etc., etc. Mas é tão fundamental quanto abrirmos os olhos e cérebro para saber discernir o que é o perigo e o que é nossa dificuldade em pensar além de nossa caixinha. Não é simplesmente a tentativa de transfigurar uma norma moral para o âmbito jurídico, é a completa alienação do que viria a ser um abuso de fato e o que cada um considera como inadequado.

Para obter uma reflexão mais aprofundada a respeito da questão, acompanhe a linha de raciocínio do texto sobre a diferença entre a pedofilia e abuso sexual infantil do portal Dourados Agora.

A nudez existe dentro do mundo da arte há mais tempo do que somos capazes de contabilizar com precisão.

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“Davi”, escultura de Michelangelo – Porque já faz um tempo que a arte está nua II

Estudiosos afirmam que os primeiros nus com finalidade estética surgiram na Grécia Antiga e, curiosamente, estavam estreitamente ligados ao que se chamava então de Arte e Religião. De todo modo, com o passar do tempo o burburinho denominado gente pelada ganhou força, sendo um dos principais enfoques do movimento que revolucionou a arte e é compreendido até hoje como termômetro para indicar qualidade ou inaptidão nas produções artísticas. Ele mesmo, o Renascimento é fomento do nu, nos trazendo referências icônicas como o próprio Davi, de Michelangelo, escultura de 5 metros de altura onde um herói bíblico é retratado totalmente sem as vestes. Veja bem, são 5 metros de altura pelado, e, ainda assim, a unanimidade não deixa de lado os aplausos que admiram a capacidade do artista em realizar uma obra de tal verossimilhança.

“A questão é que não era uma estátua que estava lá para você admirar, era um cara com o pênis exposto ao vivo”. Nesta outra mensagem recebida criticando a exposição, podemos observar vários pontos interessantes que exibem bem o pensamento clássico por trás do problema com a performance.  Se fosse uma estátua, o nu não apresentaria afronta porque uma estátua está lá para a nossa admiração. A arte, que foi reduzida, a simples admiração, não enfrenta dificuldades com a estátua porque tecnicamente esta não tem como objetivo de existência ser algo sexual, assim como tem o ser humano. Então observar um ser humano “com o pênis exposto ao vivo” tem a função singular do ato sexual, assim como a arte possui a única significação de nos fazer ficar admirando.

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“A calúnia de Apeles”, Botticelli – Porque já faz um tempo que a arte está nua III

“A arte tem um elemento fortemente transgressor”, afirma Renato Janine Ribeiro, professor de Ética do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação, para o Nexo Jornal . A propriedade que ganhou força em especial na segunda metade do século XIX, a partir do romance realista “Madame Bovary” de Baudelaire – que foi processado na justiça no período -, foi fomentada anos mais tarde com a chegada da performance em 1960. Aplicada geralmente por mulheres que manifestavam suas pautas contra a dominação masculina, dentre outras opressões, o corpo nu passa a ser empregado como arma, empunhando o debate que Renato destaca em sua entrevista: “A arte tem essa característica. Não é pornografia. Não é a mera exposição de atos de violência ou de sexo, é uma busca de meditar sobre isso.”.

Ainda que portando tantos fatos, é necessário compreender que apontar um dedo na cara de quem não tem acesso ao conhecimento é o privilégio nosso de cada dia dando as caras. A arte contemporânea é sim restrita e talvez exija uma reflexão que não acessa pessoas que não tiveram anteriormente um panorama de todas as suas dimensões. No entanto, ainda assim não é possível se calar perante a não abertura ao diálogo. E principalmente, é impossível permanecer imóvel quando instituições que recebem o conhecimento persistem na ignorância e por escolha, como vem a ser o caso do Movimento Brasil Livre e outros grupos de direita que se manifestaram impetuosamente contra os organizadores e realizadores “pedófilos”. Outro exemplo de conservadorismo a ser estudado é Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que divulgou o vídeo da performance sob a legenda de “mil vezes canalhas”, nos levando a dúvida cruel de onde estão sendo fundamentadas essas opiniões.

A primeira pista para alcançarmos a resposta se encontra na análise de outros episódios recentes no meio artístico, como o fechamento da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, pelo patrocinador Santander, ou até mesmo a proibição de exibição da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, pela justiça de Jundiaí que considerou inadequado a representação do papel principal por uma mulher transgênero.

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“Venus anadyomene”, Jean Auguste Dominique – Porque Já faz um tempo que a arte está nua IV

 como essa tem em comum além de explicitarem os tempos difíceis que são para os sonhadores artistas? A religião como argumento para estabelecer a opinião de uma massa da população que cambaleante, vem conseguindo usar sua fé como resposta para a sociedade de maneira geral.

Pessoalmente, acredito que a interpretação rígida de Deus e suas divindades nos levará, em pouco tempo, de volta as fogueiras. Mas ainda assim essa é minha opinião pessoal. O que convém relembrar aqui é o conceito de estado laico. É válido lembrar que toda religião merece ser respeitada, porém questionada. Quando a religião é utilizada como desculpa para a opressão e censura, ela precisa ser questionada. A arte, de maneira similar, merece ser respeitada e questionada, não detida. É de sua natureza básica a sensação de inquietação e discordância, porque as revoluções são instauradas dentro da necessidade de mudança. Ainda mais quando vivemos em um país onde o nome de Deus é utilizado de argumento político.

O principal ponto de reclamação, nesse aspecto, da exposição, é com o fato de se tratar de uma “zombaria com a fé dos outros”. Aqui acredito ser apropriado mencionar que é por esse mesmo nome de fé que nossos primeiros (índios) foram vestidos e suas culturas apagadas, para começar.

Mas já que o assunto em questão é pedofilia, vamos tratar de dados, pessoal? É como consta o novo ditadinho popular: se for para falar de pedofilia vai ter muito mais igreja fechando do que museu. O gráfico a seguir aponta dados de padres e pastores acusados ou comprovados de pedofilia dos últimos anos.

quase 4,5 mil denuncias de abusos sexuais a menores realizados por membros da Igreja Católica entre 1980 e 2015

 Dados retirados de:  EM.com.br InternacionalG1

E já que a grande vontade é criticar a pornografia, por que não discutir, apenas uma sugestão, essa indústria tão forte no país que diariamente objetifica e violenta a mulher? Por que não discutir o novo filme do herói da massa de manobra, Danilo Gentili que faz piada com pedofilia e bullying e continua intacto na problematização? E aqui vale o aprofundamento: baseado no livro do apresentador e comediante, “Como se tornar o pior aluno da escola” conta a aventura de dois garotos realizando as lições presentes em um caderno. A cena que gerou burburinho é protagonizada por Fábio Porchat, que logo no início do filme sugere ajudar a encontrar o pior aluno desde que os meninos o masturbem. A história ganha ainda um outro viés ao ser publicada uma matéria na Folha de São Paulo, onde o jornalista Diego Bargas traz a tona as problemáticas do filme e é demitido em seguida, já que Gentili não parecia muito satisfeito. Mais curioso ainda são os comentários no texto da Folha, em que leitores acusam o jornalista de participar da “censura politicamente correta”, ou afirmam que “o politicamente correto tem por objetivo acabar com debates e reflexões sobre determinados assuntos”. Apenas a nível de curiosidade, vamos agora a um comentário de leitores no mesmo portal, sobre a exposição-tema deste texto: “esse pessoal não tem vergonha na cara, um monte de babacas brincando de sacanagem envolvendo criança e dizem que esta porcaria é arte”. Fiquei confusa.

Em uma sociedade onde o estupro romantizado na TV é aplaudido, onde ir de roupa curta para missa é proibido para nenhum rapaz cair em tentação, garotos são incentivados desde cedo a dar em cima de garotas para serem os pegadores, dentre uma lista interminável de tantos outros exemplos, o problema continua a ser uma exposição em que se propõe um novo olhar a respeito do corpo? Talvez choque tanto porque não existe uma vontade de olhar de maneira diferente, certo? O moralismo já nos é confortável porque nos deixa à vontade para continuarmos cometendo as pequenas imoralidades sem discussão, não?

Porque aí vai ser preciso levantar o bumbum do sofá, limpar o histórico do computador e mudar de vida né, senhores? Aí já não é para tanto. Voltemos então a falar da exposição. Pouca vergonha? Aqui não! Só se for para falar do pênis alheio.


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