Questão de Opinião

Corpo em Obra, de Julia Panadés

*Texto e imagens por Beatriz Farias

Essa não é uma resenha ou recomendação dessas que ficam assim marcadas, agendadas. Tampouco uma crítica a ser racionalizada a respeito de uma exposição que certamente merece críticas mais responsáveis. Isso é um breve comentário porque eu estava lá, enquanto ela estava lá e a grande graça de andar de um lado para o outro nessa cidade é permitir ser atravessada por tudo que acontece enquanto a gente está. Aquilo que é caminho.

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Corpo em Obra é uma exposição de Julia Panadés, artista mineira que escreve, desenha e revira nosso cérebro e entranhas com o seu olhar para o olhar e a palavra. Tudo isso acontecendo até o dia 25 de agosto no Centro Cultural São Paulo, o CCSP, equipamento público responsável por reunir inúmeras atividades culturais na cidade de São Paulo.

São três as paredes que compõem a exposição Corpo em Obra. Entrei pela parede denominada Flâmulas do Naufrágio, onde se faz necessário tocar a palavra. Ir se afundando nas palavras.  A respeito dos materiais utilizados, a descrição da série diz assim: livro de tecido bordado. Linho, seda, algodão, fio e prego de aço inox, madeira.

A explicação dos materiais dos quais a exposição é feita trata-se de uma conveniência técnica comum à linguagem, mas aqui achei especialmente coerente saber dos tecidos que criam as camadas para a poesia. A poesia pregada nas bandeiras não diz respeito apenas ao que a gente toca, mas o que a gente consegue tocar. Se a gente não permite que nosso corpo participe, a gente só toca a primeira camada. Tudo bem. Mas se a gente aceita tocar, se a gente permite que a obra afete e concorda em acessá-la, tem mais lá.

Isso de afeto foi uma coisa que notei bordando mesmo, não apenas por se tratar de uma técnica transmitida por várias gerações de mulheres da minha família. Mas a partir do próprio exercício que é o bordado. É botando e tirando a agulha do pano que você percebe na carne como o processo importa. Como a arte se relaciona com permitir que o corpo participe, é daí que vem o exercício poético.

Chegar nessa exposição foi assim: estar procurando algo que eu não sabia bem o que que se relacionasse com um sentimento que eu não sabia bem qual. Porque andar no CCSP são sempre essas muitas camadas. O espaço é público, quase como se te obrigasse a olhar para aquela estrutura grande e cheia de vazios e exageros e pessoas dançando músicas diferentes no mesmo perímetro. Porque o corpo está sendo feito e quando eu encontrei isso que eu não sabia bem o que era não tive paz. Tive, pelo contrário, uma sensação de pertencimento absolutamente inquieto. Permitir que o corpo participe é também saber que o corpo a disposição vai sofrer os impactos do espaço. O calor, as pessoas, o barulho. O tecido recebe a agulha com a linha que provoca nele esticamentos e encolhimentos e muda sua cor e sua estrutura não é mais a mesma. É a condição do trabalho, o afetamento.

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Daí na segunda parede, o chão avisa que não se deve tocar nas obras. É curioso como a proposta para observação das frestas seja pela contemplação. Nessa parte eu achei que a proposta desse corpo em obra era também sobre recuar. Sobre aprender a ser tocado e a tocar sem levantar a mão.

O último pedaço da exposição não se trata de uma parede, algo reto, plano. O vestido que se estende, requer a gente olhe para cima para ver de onde parte. Uma saia longa imponente com luz amarelada.

A primeira coisa que eu pensei foi assim: eu acho que eu caibo nesse vestido. Mas antes de seguir a orientação do chão e entrar, girei algumas vezes pelo lado de fora para encontrar todas as suas brechas. Cada rasgão revela. Quando entrei pela fresta que se abre com um trecho do livro da Ana Cristina Cesar (Cartilha de Cura: as mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios), o pertencimento voltou. Cabia justamente um corpo ali dentro. Aquela roupa com os bordados na parte interna sabe tudo que o pano veste e despe. Como se você decidisse não entrar você não alcançasse o íntimo da palavra. A palavra pelo avesso. A palavra revirada. Como se bordar por dentro fosse um convite para avessar e desavessar, esse vestido vai caber.

Logo que saí do vestido quis entrar novamente. Nesse momento uma outra menina se aproximou e eu achei que era minha deixa para deixar a exposição. Aceitar que outro corpo participe.

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Primeiro você toca com a palavra, depois você contempla, depois você entra: permitir que o corpo participe. Curioso esse título corpo em obra. A obra que pode ser o processo, um trabalho que está a ser realizado. Ao mesmo tempo em que designa seu próprio efeito de prontidão – o corpo que pisa o caminho é o mesmo corpo que é o caminho e dentro do vestido diz assim: fazer do corpo em obra a terra firme.


Beatriz Farias

Estudante de artes, estagiária de moda sustentável, escrava de Armazém de Cultura, Beatriz Farias ainda não é formada, ainda não tem curso superior e segue sem vergonha de falar de si em terceira pessoa. Gosta de gostar das coisas mas descobriu nos últimos anos que olhar criticamente para o mundo é também uma forma de amar e mudar as coisas.

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