*Por Clara Assunção
Se o cinema é sobretudo um instrumento de construção de discursos, Green Book – O Guia dá pistas sobre o porquê do racismo ser uma prática política comum a tantas sociedades, até hoje.
Não à toa, o filme não tem escapado de críticas quanto a mensagem que deixa ao final.
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O resgate da história do pianista Don Shirley (Mahershala Ali), que marcou o jazz e a música clássica pelo seu grande talento, à mercê de todo o desmerecimento que sofreu por ser negro, parece sobreposta a trajetória que trilha ao lado do motorista Tony “Lip” Vallelonga (Viggo Mortensen), que o acompanha durante uma turnê ao sul dos Estados Unidos, em meados dos anos 60, onde a segregação racial era seu desenho.
A despeito de sua condição de migrante italiano, Vallelonga encarna todo aquele racismo estereotipado, em que nada é velado, mas que, a partir da convivência com o consagrado pianista, vai sendo desfeito dando lugar ao afeto e respeito. Pelo menos é isso que o filme quer fazer crer.
Não sei se consegue. O desfecho dá à obra aspectos menos complexos da realidade, confirmando ainda aquela velha fórmula cinematográfica, tão utilizada no circuito hollywoodiano, semelhante também às novelas em que a “tradicional família brasileira” assiste mesmo sabendo que, no final, o que fica são os felizes para sempre.
Confesso, aqui do alto da minha ignorância cinematográfica, que essa previsibilidade me faz duvidar dos motivos que levaram à indicação de Green Book – O Guia, em três, de um total de cinco categorias em que concorre ao Oscar, neste caso como filme, roteiro e montagem.
É claro que a realidade é enfadonha e um pouco de suavidade, ainda mais nas telonas da vida, sempre cai bem. Mas ao dar ao entendimento de alguns, uma certa virtuosidade à imagem de Tony, é também desbancar momentos anteriores do filme em que se despontam questionamentos existenciais e, esses sim, que tocam o espectador para uma experiência que deve ser própria do cinema: o de adentrar na complexidade do outro.
“Se eu não sou branco, nem aceito pelos meus, nem homem. Quem eu sou?”, é, para mim, a pergunta que desafia todo aquele maniqueísmo que nos faz refém de ideias e visões de mundo.
O embate que atravessa Don Shirley, autor do questionamento, é o ponto alto da obra por dar conta do que, no final, somos todos nós, compostos de fúria, vontades, ambições, mas limitados a estigmas sociais que, no caso do pianista, ameaçavam sua integridade e a própria vida.
A contemporaneidade que tecem algumas das imagens do filme também é outro encontro do cinema que desafia o espectador.
A cena em que Tony precisa fazer um conserto no carro e, enquanto aguarda, Don Shirley repara, em uma plantação à frente, o trabalho na colheita de homens e mulheres, todos negros, enquanto a imagem passa despercebida ao motorista, é quase como um daqueles tapas na cara que nós, brancos, precisamos tomar para entender os motivos que fazem com que, em alguns espaços, pessoas negras sejam minoria, ou ao contrário.
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Dirigido por Peter Farrelly e com roteiro assinado por Nick Vallelonga (qualquer semelhança não é mera coincidência) e Brian Currie, Green Book consegue arrancar algumas risadas, impressionar pela atuação dos protagonistas e apresentar o famigerado final “feliz”, mas que, com o digerir das informações, revela-se na verdade “triste” por percebemos que estamos mais próximos da época segregacionista do que o filme de fato que fazer pensar.
Confira o trailer:
FICHA TÉCNICA:
Green Book
Direção: Peter Farrelly
Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini etc.
Nacionalidades: EUA
Duração: 2h 10min
COMO ASSISTIR (SP):
Em cartaz em salas de redes como Cinermark, Kinoplex, PlayArte, Espaço Itaú de Cinema, Reserva Cultural, etc.
CATEGORIAS INDICADAS NO OSCAR 2019:
*Clara Assunção
Na incompreensão do nome composto, prefere mais o Clara que o Stefanie. É filha da migração nordestina na década de 80 na cidade de São Paulo. Desde pequena coleciona histórias da família que versam sobre suas condições. Foi por encanto dessas palavras que se encantou pelo jornalismo.