*Por Meiri Farias
Essa é uma carta de amor travestida de resenha. Cheguei na Casa Natura Musical no dia 23 de fevereiro (sexta) como na música que abre o show, sem medo nem esperança. Depois de uma semana extrema de trabalho, na perspectiva de acordar muito cedo no dia seguinte para retornar para a pós-graduação, o instinto principal era abandonar os planos e me refugiar no descanso da minha casa. Mas cobrir o show da Gal Costa não é o tipo de oportunidade que se deixa passar, independente das condições.
Vamos ao cenário, afinal Gal Costa não demanda contexto. Uma das maiores vozes da história da música brasileira, apresenta um show cheio de energia, novidade e nostalgia ao mesmo tempo. A primeira canção, supracitada, é parte do álbum mais recente da artista, Estratosférica (2015). Vibrante, animada, porém firme em sua mensagem, a composição parceria de Junio Barreto, Pupillo e Céu deu o tom do que aguardava o público durante todo o show. Era a expectativa que ditava as sensações na abertura. Mas o ápice (o primeiro deles, porque no show da Gal o clímax vem em atos) veio a seguir.
Tenho uma ética jornalística que me leva a ser mais contida quando estou acompanhando determinado evento para o Armazém. Aproveito, me divirto, até porque o blog sempre foi pautado por percepções pessoais, mas sempre com uma tentativa de distanciamento do sujeito ou objeto sobre a qual devo escrever para apresentar um conteúdo mais profissional (mais justo, talvez). Esse é o meu ponto. Gosto de sentir, por que só escrevo sobre o que me atravessa. Mas sempre dois passos atrás, para que a razão sobressaia.

Foto: Casa Natura | Felipe Giubilei
Esqueça tudo que falei no último parágrafo.
Ainda no fim da primeira canção, as primeiras notas anunciaram o que vinha seguir. Mal Secreto, a canção hino, composição de Jards Macalé, gravada no disco Fa-tal: Gal a todo vapor de 1971. A canção rapidamente preenche o espaço inteiro de modo quase palpável, com a voz e
Pausa, sim, isso pode parecer estranho, mas preciso de uma pausa aqui. Esse texto foi escrito como a maioria dos conteúdos do Armazém: no ônibus, em filas de terminais, correndo e em trânsito. Esse texto estava praticamente pronto, salvo em um rascunho de e-mail (salvo, acredite, eu me certifiquei). Mas o “rato de Deus”* estava me espreitando. Por algum motivo o e-mail enviado perdeu metade do seu conteúdo. Quatro ou cinco parágrafos completos e intensamente emotivos, o que me deu uma alegria indescritível. E sumiu, *como o rato do conto da Clarice. Estou abalada e achei de bom tom compartilhar o motivo, já que é pouco provável que consiga o mesmo resultado que o original. Mas é preciso perdoar-se e seguir.
a presença de Gal. Se até então vivíamos um prelúdio, em Mal Secreto compreendemos Gal em toda a sua intensidade. Desprendida de todo o distanciamento jornalístico, de algum modo atravessei o público e me postei na beira do palco. Tomada pela experiencia do espetáculo como jamais me aconteceu, o tipo de sentimento que transbordar por todos os poros, sem nenhuma preocupação racional. Catarse talvez seja a palavra aceitável. Como é sentir a alma abraçando tudo, sendo envolvida de forma completa pela música? O filtro da razão pode banalizar e tornar piegas esse tipo de indagação, mas quando se trata de arte, nem sempre a razão é requisito obrigatório.
Talvez se trate da reação normal da maioria das pessoas, um sentimento de entrega, explosão e ao mesmo tempo conforto, da qual tudo parece novo e familiar demais. Talvez seja o fato de contemplar uma artista extremamente talentosa e completamente consciente de si, como cantora, como interprete, como ocupante de um palco em sua totalidade. Talvez seja o fato de que, ao escutar a Gal, toda uma geração de música se espalha pelo ambiente. Todo um imaginário sobre a música brasileira, que chega pelos compositores, pelas histórias ou pela presença. Eu dispenso saudosismo, a melhor música que se faz é a música que se faz agora. E a de amanhã e a de depois. Mas que a sorte a nossa de contar com um ontem que nunca acaba.

Foto: Casa Natura | Felipe Giubilei
Ou talvez seja algo muito mais simples e singelo. Uma artista no palco, uma banda competente e uma necessidade muito forte de encontro. “Nos encontramos na música” é o que diz o slogan da Casa Natura. Me parece muito mais doce do que publicitário agora.
O show segue apresentando uma mescla de canções do disco mais recente que dá nome ao espetáculo como Por Baixo, de Tom Zé, e Quando Você Olha Pra Ela, de Mallu Magalhães (que rende um coro entusiasmado na plateia), mas ganha seu próximo ápice com as músicas de Caetano, claro. Quando canta Como Dois e Dois, nada está certo, tudo está errado, a vida está um caos. E está tudo bem. E agora já escrevo esse texto sem a certeza de publicação. Com duas semanas de atraso, uma dorzinha que persiste da perda do conteúdo original, mas uma sensação principal de que isso, seja la o que for, merece sair para o mundo. Se a arte providenciou esse sentimento, seria pecaminoso não compartilhar. Tá tudo errado mesmo Gal, o Caetano tinha razão. Mas a gente nunca precisou entender matemática para sentir.
Como não poderia deixar de acontecer, a noite teve um aspecto negativo que sobressaiu mais do que deveria. Se por um lado o público que beirava o palco estava absolutamente devoto e entregue, outra parcela considerável das pessoas claramente não aderiram a proposta. O smartphone parecia mais interessante, o bate papo com os amigos genial. O clima em determinados pontos da plateia era de mesa de bar, onde parecia que o show era música ambiente. Isso paralelo a catarse que acontecia no palco. Desrespeitoso com a artista, desrespeitoso com o resto do público e, infelizmente, não foram casos isolados. Particularmente não consigo entender o que leva alguém a comprar um ingresso para ignorar o artista completamente. É a Gal Costa que está no palco e ainda que fosse um completo desconhecido. Se você se propõe a entrar em contato com a música, é solo sagrado meu amigo. Você está em contato com um templo. Menosprezar isso é inaceitável.
Ouça “Estratosférica – Ao Vivo”:
Mas deixando o rancor para outra hora, a banda merece menção especial. Com direção artística de Marcus Preto, Gal está muito bem acompanhada, com músico vibrantes e talentosos. Canções como Cabeleira e Estratosférica são radiosas e dançantes. Dez Anjos (de Milton Nascimento e Criolo) é introspectiva e política e a atmosfera é densa. É triste notar que a cor da banda se perde um pouco no DVD, o “ao vivo” é necessário para perceber o poder de comunicação do instrumental.
Objeto Não Identificado (Caetano), Pérola Negra (Luís Melodia) e depois um momento “voz e violão”. Para citar todos os momentos emocionais, teria que passar música por música. Quase não consigo citar as ausentes que gostaria de ouvir, Baby, é claro, Vaca Profana e também as recentes Espelho d’água e Anuviar. Mas tudo bem. A mera lembrança de aquela Gal ali no palco é a “dona” dessas canções (no meu coração é sim) e que um dias as cantou, foi o bastante.

Foto: Casa Natura | Felipe Giubilei
No show Estratosférica, Gal é Tropicália, é Bossa Nova e muito muito contemporânea. Representando a geração que revolucionou e cantou o país nos últimos 50 anos, a cantora se aproxima e absorve também a nova geração, com Mallu, Marcelo Camelo, Criolo e Kassin. E se despede do palco com Meu Nome é Gal, afirmação absoluta: a maior cantora do Brasil tem toda a história da música dentro de si. Mas a voz é inteiramente ela.