*Por Beatriz Farias
Pode ser que você esteja se perguntando o que levou o retorno neste quarenta e cinco do segundo tempo que se chama última sexta de 2017. É que existem tradições que importam. É sempre bom dar uma checada nas tradições e rememorar porque a seguimos, seja pelo quentinho no coração, a importância que ela traz ou até mesmo a necessidade de nos desfazermos dela caso seja incoerente.
No caso especifico deste texto já tradicional por aqui, olhar para as músicas lançadas no ano, pessoalmente, me lembra de que existe vida nas coisas que tocamos, e que as coisas que nos tocam nos proporcionam o relembramento de que estar vivo é um detalhe que importa a medida que decidimos o que fazer com isso.
Este não foi um ano fácil de andar com o Armazém de Cultura. Ainda com a assiduidade de nossa colunista Talita Guimarães, passamos todas por inúmeras mudanças pessoais e profissionais que necessitaram o desvio parcial de nosso olhar para este projeto que tanto nos motiva, apaixona e inquieta. Pretendemos voltar com novidades ano que vem.
Por fim, é necessário voltar a atenção ainda para a minha lista em si. Aqui destaco o que para mim foram as 8 músicas do ano (decidi listar todas que achava que deveriam estar por aqui e depois aceitar a quantidade que eram, sem o filtro anteriormente usado de 5 faixas), no entanto é importante notar que se trata de uma lista composta majoritariamente por homens. Homens brancos. Não porque não tenha escutado mulheres, artistas negros, mas quando se trata de lançamento, este foi meu saldo. E perceba quão indicativo este saldo é, ainda que dedique grande tempo para conhecer e incentivar um trabalho que não chega na grande mídia: não é o bastante. Na verdade, trata-se de uma parte superficial do começo. E perceba, não porque existem poucas mulheres, poucos negros fazendo música ou qualquer outra manifestação artística. É muito sobre nossa zona de conforto. A bolha privilegiada dentro da bolha. Ainda assim, decidi permanecer com a honestidade da lista, não apenas para expor o dado mas também para deixar registrado o desafio para o ano que vem e trabalhos que valem a pena. Vamos juntes?
*Para ouvir a música, clique no cartaz com seu respectivo título
*É possível ouvir a lista das canções no Spotify clicando aqui
É impossível mencionar essa música sem falar do contexto em que ela ganhou o título de uma das melhores coisas que alguém que nem sabia que eu precisava me disse. O disco “Isabel”, de Carlos Posada, foi lançado logo no início do ano, época em que, pessoalmente, nada acontecia. O tempo morto era completo. Logo ao me deparar com a canção, a primeira sensação tomada era a ironia total da mensagem: “mesmo que demore a vida inteira para acontecer, as coisas acontecem de uma hora para outra”, sendo logo substituída por um afeto inocente de quem acredita.
Com a honestidade que me cabe, posso afirmar que esta não foi nem de longe a música que mais ouvi desse disco. No entanto, veio integrar a lista por se tratar daquela luz no fim do túnel quando já nem mesmo havia música que me tocasse, e essa luz apontava o norte. A esse fator culpo integralmente a voz de Posada, capaz de te levar para frente querendo ou não: “se não conta com a sorte, conta de novo”. Seu tom é composto por antônimos, é possível identificar a bruteza das exclamações com a doçura de quem compreende dos “atalhos do repouso”.
A canção que mais parece um conselho que vai se concluindo enquanto é mencionado, tem um tom de real que impulsiona. Talvez seja por conta das imagens apresentadas por Carlos Posada com a prontidão de quem chega de mansinho para desarrumar os lugares já fixos, ou talvez as palavras simplesmente façam sentido com um sentimento comum e que as vezes a gente nem sabe que está sentindo. O que posso afirmar ao certo, é o final da estrofe como bote salva-vidas em um mantra passível a fé até mesmo dos maiores descrentes: vou me ater ao fato, o amor nunca falhou.
2017 foi o fatídico ano em que descobriram onde estava Belchior. A notícia que reacendeu o debate sobre uma obra tão rica a e persona peculiar que a apresentava, não podia ser diferente em fazer explodir em todos os cantos do país homenagens, além de um sentimento sem nome, cuja palavra tristeza não parece complexa o suficiente para o abarcamento. E dessa nossa certeza nó na garganta de que ainda não há jeito de abordar seu nome, Daíra vem há bastante tempo aliviando o receio em um tributo que desaguou em álbum que não poderia ocupar outro nome: “Amar e mudar as coisas”.
Como não é possível acrescentar na lista cada releitura sensível e inteligente escolhida por Daíra para compor o repertório, “Conheço meu lugar” ganha o espaço pela paralização angustiante e de assentamento viabilizada. Curioso analisar que a mesma canção lançada no ano de 1979 – presente no disco “Era uma vez um homem e seu tempo” – possa ecoar tanto mais de três décadas depois. A faixa desestabilizadora escancara nova perspectiva sobre voltar para casa, sobre nordeste, vai se dizendo o que é pela negação. Como quem sabe de si a ponto de já não precisar das certezas prontas do “serão dos ofendidos” ou da “nação dos condenados”, enquanto destila o pertencimento de modo mais bruto e ideal: “conheço o meu lugar”.
A interpretação de Daíra fala de modo profundo com um sentimento coletivo da mais primeira identificação, a voz rasgada no peito como quem vive ali com respeito a palavra do cronista que transformou em uma única música o cotidiano e absurdo dentro da mente inquieta. A interprete emociona ainda pela reverencia irreverente da qual se apropria para a canção, o que parece jeito mais cabível de demonstrar apreço ao homem que nos ensinou a nunca fazer o que o mestre mandar.
Existe uma onda crítica e que provavelmente envolve um conservadorismo velado, que desaprova o RAP que aborda temas considerados “fofos”. Ainda que não tenha o intuito aqui de escrever a esse respeito, tendo em visto que planejo o fazer num futuro onde tenha maior embasamento sobre o assunto, vale questionar o que significa uma lógica que observa o amor como responsável por tirar a potência da resistência. Como que diluindo qualquer linha que tenha como objetivo separar cada movimento em caixas e assim trancá-las para que não cometam o pecado da diversidade em transitar, Emicida apresenta canção que em seu próprio título já prevê a novidade.
Oásis, de modo simplificado, significa uma pequena região fértil em pleno deserto. “Oásis”, composição de Emicida, Dj Duh, Dudu Marote e Miguel, segue pelo mesmo caminho de significação, apresentando dentro disso o que provoca a diferença de quem você é no espaço em que ocupa, mas ainda assim, ou também pela metalinguagem do título, a canção é colo necessário.
Refletindo com primor a precisão de se sentir em casa após o retorno de cada embate travado contra tudo que ainda inferioriza, contra tudo que em cada um ainda diminui cada um, “Oásis” equilibra a aspereza imprescindível de continuar falando do “peso da lágrima de gente honesta”, mas nem por isso deixa de refletir sobre a leveza que é chegar no fim do dia e: “entrelaço os dedos nos dela e assim disfarço o medo”. Por essa razão, o single aparenta ser todo fundamentado na esperança, com a responsabilidade de olhar para frente com dificuldade, e ainda assim como só a coragem de quem acredita possibilita, “crer que ainda vou ouvir você dizer ‘mi casa su casa’”.
Sim, cá estou eu mais uma vez falando do novo disco de Castello Branco. Não tive outra alternativa, a canção parecia me escolher involuntariamente desde a primeira audição. É que “Evidente” é o tipo de música que facilita as coisas. Não é sobre menosprezar o rebuscamento da poesia, nem comentar que a canção mencionada não contenha letra bem trabalhada. Mas aqui a gente tem a tradução do desembaraço que salva. A música que chega a conter uma inquietação gostosa das coisas que precisam e estão sendo ditas, compreende toda gente na festa explodindo em plena alegria daquilo que é recíproco, ou mesmo pronunciada em alguma dancinha colada e silenciosa.
A paixão por “Evidente” (e não há palavra boa como “paixão” para descrever a reação a essa música) é sobre qualquer coisa que me impede de ficar parada, ou ainda simplicidade, suor e quentura. É o Sintoma de Castello. Gosto da possibilidade de ser levada a um gosto sem que necessite precisamente de uma associação, e é isso que aqui encontro. Embora entenda da catarse provocada neste refrão que mais parece um banho gelado de chuva após longa temporada na secura, a música parece me devolver o mais profundo respeito pela degustação em si, sem que necessariamente precise estar acompanhada de tantos outros significados. E “que mal que isso tem?”.
Essa música não foi amor a primeira, nem a segunda vista. Pode-se dizer que foi carinho que chega aos poucos, na medida em que equilibra o silencio consentido entre permitir e se entregar. É que “Inverno” ganha cada vez mais sentido quando observado cada detalhe contido na versão lançada este ano, assim como a introdução, onde é possível identificar, caso se preste muita atenção, a vocalista Uyara recitando alguns trechos de “Trovoa”, canção de Mauricio Pereira que também foi regravada no disco novo dA Banda Mais Bonita da Cidade, e que se casa com sutileza e verdade na música aqui destacada.
A letra de Alexandre França tem um tom de maturidade implicitamente doce, como se fosse possível reconhecer as pequenas rugas se formando na própria canção. E ao invés do peso do tempo, substitui-se qualquer coisa de um ano e outro com o aceitamento de uma paixão que vai se compreendendo. Acredito que essa nova versão chega para nós, enquanto mundo, no momento exato em que precisávamos de uma possibilidade de descongelamento, como ir deslizando até o anuncio mais simples e bonito dos últimos tempos: “eu tenho que tirar você para dançar” constatando o sorriso que se forma na voz de Uyara, tal quem diz ser essa a única alternativa possível para o momento.
E aqui vale a anotação pessoal de não ver esta com a faixa mais grandiosa do disco em termos técnicos, mas a sua descontinuidade em crescer e depois diminuir de novo a torna imensa porque o sussurro importa. O tema retratado dialoga inclusive com outra música do repertório, “A dois”, onde afirma-se que “o amor convém”. E a gente agradece o lembrete, de modo que realmente não importa mais se chove aqui.
Disseram que o disco do Chico era o melhor do ano, disseram que era o pior. Discordo intensamente das duas opiniões, aqui a unanimidade é burra, já que o Chico nunca cabe dentro da implicância ou devoção cega, Chico ainda fala com o agora, embora já tenha inúmeras vezes tropeçado nas regressões passadas. “As caravanas” canção que conta com participação de Rafael Mike, é prova pulsante da esperteza grande e boba do artista, que nela soma o essencial entre letra brilhante e ritmo coerente, as coisas coexistindo em sua singularidade. Com a capacidade de agregar uma beleza sublime por ser tão cotidiana, Chico não está falando da periferia simplesmente, muito menos da classe média somente. Aborda, no entanto, o choque de realidades, esse frisson social provocado no deslocamento.
O artista narra uma cena como ninguém, em uma metalinguagem inteligente somos a própria caravana observando atentos a história contada. Mas este que conta não é um guia muito preciso, tá mais para um contador de causos anotando o que vê passar na mesa de bar: no fim não quer mostrar as belezas da cidade maravilhosa e sim a irônica hospitalidade seletiva e a feiura do sol escaldante que não se parece notar no cartão postal ou dentro do carro, de vidro fechado, passeando pela zona sul carioca.
Peço aqui licença para citar uma canção que ainda não foi lançada formalmente em disco, mas que necessita de espaço na lista pelo efeito provocado. “Lua cheia” é música de Pedro Viáfora, publicada no canal do coletivo 5 a Seco, assim como outras faixas que devem integrar o novo projeto “Síntese”, previsto para vir ao mundo em 2018.
Viáfora desagua em uma exposição desanimada da realidade na estrofe que antes de qualquer coisa, cativa pela identificação. Se parasse por aí já seria de grande alivio ter alguém dizendo conosco que essa tal fé que tanto prometemos com os entes queridos no final de ano “não firmou”, mas o artista subverte a dureza acompanhado de uma melodia comovente com o pedido genuíno: “vem cá”. O convite é catártico na mesma medida que impressiona por sua simplicidade, com a potência de emocionar tranquilamente, ele completa: “olhar para as estrelas, vamos criar memórias, elogiar pessoas”, como se fosse retirando, ao passo que canto, o tão pesado cansaço de nossos ombros enquanto propõe a calma.
Relembrando a graça de cada clichê já esquecido, a letra reativa uma sensibilidade já carrancuda por um ano que não teve como marca a facilidade. Não dá para saber quando Pedro Viáfora compôs a música, mas o sentimento de entendimento e agradecimento vem intenso do período retrospectiva em que foi compartilhada. As vezes a gente só precisa dividir o peso, e desse 2017, ano que retrocedemos e conquistamos absurdo, a impressão que paira é que cada vez que algo um passo era vencido, uma camada entendível e demasiadamente rígida era imposta sobre nosso afeto. “Lua cheia”, portanto, vem desembrulhando nosso medo de voltar para a essência enquanto entende a beleza de um agora simples, a beleza do que importa.
Seria necessário um texto completo (anotar: planos para 2018) para explicar o fenômeno que é “Lalá” e o manifesto que Carol faz, sem que deixe por isso de colocar no mundo da arte um produto divertido, instigante e de qualidade inteiramente elevada, menciono isso caso você faça parte deste triste time antiquado que acredita que “‘militância’” e “‘arte’” são duas coisas que não deveriam se encontrar” – frase retirada de uma conversa que presenciei neste último semestre.
Além de um protesto evidente a respeito da possibilidade sincera do corpo feminino obter sua liberdade sexual sem que esta necessite ser um agrado ao prazer masculino, a canção apresenta um tipo tão em alta neste nosso 2017, já que estamos em clima de retrospectiva: o homem que fala demais. Ok, esse tipo sempre existiu, mas esse ano tivemos uma proliferação ainda mais consistente desse homem desconstruído, ele que já não é o estereótipo “macho alfa o prazer é só meu”, ele que carrega o machismo velado, aquele que agita demais, porém permanece com um nojo maquiado do nosso corpo (“egoístas criando orgasmos imaginários”), esse mesmo nojo que acaba sendo responsável pelo ódio que sentimos do nosso próprio corpo.
Com um videoclipe que merece menção por se tratar de outra obra de arte repleta de mulheres na concepção, “Lalá” tem quê de hino pela identificação proporcionada com mulheres que vão desfazendo a ideia de serem objeto de prazer e se deparam com a dificuldade masculina em administrar uma situação quando percebem que aquela outra pessoa ali sabe o que quer, ou apenas o fato de que quer algo. E é aí que Carol é uma artista completa. Seu trunfo é aliar com propriedade uma letra completamente direta e de fácil entendimento que nem por isso é simples, é bem construída. Faz sentido. E a gente agradece.