*Por Beatriz Farias
Sintoma é o nome dado a qualquer modificação da percepção do que é considerada normal que um indivíduo tem a respeito do seu próprio corpo, de seu metabolismo ou até mesmo de suas sensações, podendo ou não ser reconhecido como o início de uma doença.
O sintoma é o corpo dizendo que algo precisa ser revisto, ainda que não haja de fato uma alteração no estado de saúde, a presença da desestabilização alerta a importância da vistoria. Ele não vem a toa. O disco dessa semana não vem a toa. É sintomático não apenas pelo seu nome, mas pela ideia em movimento de algo que está prestes a acontecer, sendo gerada a todo momento e chegando aos nossos ouvidos como prognóstico necessário desde a primeira frase verbalizada na canção de número um: você não é quem você pensa que é.
Elaborado e dirigido por Castello Branco e Lôu Caldeira, “Sintoma” é o segundo disco do artista, sendo lançado no dia primeiro 1° de outubro. Ainda que tenha a presença do próprio Castello na produção musical, arranjo, voz, violão e guitarra, é um disco onde em tudo se vê parceria, desde participações especiais como Mãeana, Tô, Filipe Catto e Verônica Bonfim, contando também com a banda formada por Tomás Tróia – violão, guitarra e programação -, Ico dos Anjos – flauta transversal, piano, sintetizadores e programação -, Thiago Barros Leal Trindade – baixo – e Ricardo Braga – percussão -, a celebração a coletividade se mostra tanta que parece meio de caminhar e motivo: estar somando importa tanto quanto chegar onde quer que seja.
O artista responsável por tudo isso é Lucas Dômenico Castello Branco Gallo. Cantor, compositor e instrumentista, o carioca integrou a ex-banda denominada R.Siga. Em 2013, lançou seu primeiro disco solo, “Serviço”. A obra sucessora se trata de palavras registradas, um livro de nome “Simpatia” que veio ao mundo no ano de 2016 (para saber mais informações sobre outros trabalhos, confira aqui a entrevista que o Armazém fez com o artista). Na primeira quinta-feira de novembro, pleno feriado, Castello Branco lançou seu último trabalho e tema deste texto na Casa Natura Musical, um dia que fica na memória pela grandeza e disposição de cada indivíduo presente no espaço.

Foto oficial: Casa Natura Musical
Em três anos escrevendo resenhas de discos e outras linguagens artísticas, é comum criar alguns vícios de observação no momento de analisar o que faz um produto passar pelo critério de qualidade ou falta desta. Ao pensar em Castello, porém, a tarefa se torna mais complexa pois o gostar ganha novos sentidos. De qual substância é feita esse disco, que só de falar me vem a verdade de sorrir sem culpa? Será que, diante de um mundo caduco, como nos lembra com pesar Carlos Drummond, não vale a pena dedicar um tempo para escrever a respeito de um gosto que não se trata de uma resposta formada a respeito da obra, mas é matéria prima ambulante de uma melhora humana que ainda nos faz levantar da cama todo dia?
“Sintoma” aparenta chegar através de descoberta entre vontade e impulso, nada é fixo, e nem por isso a mobilidade significa inconsistência, tem mais a ver com estar em constante deslocamento. As canções apresentam inquietação necessária para permear as sensações mais básicas e primordiais até pequenas explosões de batuques e experimentos digitais. A sinceridade é tema recorrente, ainda quando não citada diretamente, o artista aborda cada assunto com honestidade e facilidade espantosa como quando diz sem rodeios “eu estou a fim” (“Estou afim”) ou até mesmo pela doce provocação: “se conhecer de verdade, coragem, que coragem” (“Coragem”).
Castello transita de maneira eficiente entre a voz e violão introspectivo a uma diversidade de sons vibrantes. É um disco para escutar no fone, tocando ao pé do ouvido do coração, do mesmo modo que é festa onde se dança até o pé deixar de tocar o chão.
A capa do disco é outro ponto que merece destaque dado sua delicadeza e a força que carrega para emocionar. Concebida por Tomás Tróia e Lôu Caldeira, sendo o último responsável também pela direção de arte, a capa apresenta um Castello jovenzinho com cara de criança levada. Sua expressão aparenta trazer o mesmo ‘vixe’ presente na faixa “Não me confunda”, talvez seja o primeiro sintoma, e ainda assim, é impossível não sentir ternura ao ver o sorriso de covinhas preto e branco do menino Lucas. O título do disco, com letras descuidadas, parece escrito pelo próprio garoto, vem em cima do nome Castello Branco e confirma a declaração do artista em entrevista para o canal Meia Horinha: “Sintoma é um espelho”.
“Viver gera necessidade”, Castello premeditou em uma das faixas presentes em seu primeiro álbum, “Serviço”. “Sintoma” exemplifica a frase notificando o paralelo entre os discos e pontuando o contraste entre cada momento. Se em “Serviço” a gente contemplava essa oração de silêncio e som com as mãos na massa e a alma alimentada, em “Sintoma” retiramos o extrato com a conclusão não consolável, mas estimulante: alguma coisa precisa ser feita das coisas que estão se fazendo.

Foto oficial: Casa Natura Musical
Continuo sem saber de fato de qual substância o disco é primordialmente feito, se tivesse que apostar, diria coragem e afeto, embora saiba que para você que lê pode ser outra coisa e tudo bem. O curioso de algumas medidas curativas é que elas se comportam de maneiras diferentes conforme habitam cada corpo. Com o passar do disco, percebo algumas maneiras de tratamento apresentadas para o sintoma inicial (segundo parágrafo) e todos os outros que foram despertados no decorrer das canções. A primeira delas, quase involuntária, é seguir a catarse dos sons em cada música, assim como o entendimento de que algo precisa ser modificado, “vai tu, se não a vida é quem vai” (“Providência”). O outro caminho é admitir a existência do fenômeno e notar que não necessariamente ele vem para o mal, mas que merece o alivio de saber quem ele é e a apreciação a partir do conhecimento: “se a gente cresce junto e se admite em tudo, que mal que isso tem?” (“Evidente”). As vezes o importante mesmo é identificar a presença de um sintoma.
Se as soluções não parecem cabíveis ou há ainda um vácuo nas respostas, a notícia absurda comentada na primeira canção é justificada na última faixa, como se dissesse que não existe tratamento melhor que o processo, como se os quarenta e dois minutos e trinta e quatro segundos de som tivessem a urgência breve de nos dar a receita: assuma.
Interessante notar, por fim, que a música que fecha o disco é responsável pela primeira canção a ser apresentada ao vivo. “Assuma” abre o show como convite feito a uma Casa lotada em plena quinta-feira de feriado, Castello subiu ao palco acompanhado de Ico dos Anjos, Tomás Troia, Luiza Brina, Thiago Barros Leal e Ricardo Braga. O momento de partilha contou ainda com participação de Alice Caymmi, Duda Beat e Phill Veras, a entrega era tanta que a sensação alcançar estar finalmente no mesmo teto, pisando o mesmo chão. E fica mais leve o peso do meu, do seu coração.
*O último parágrafo faz referência às músicas “Céu da Boca” (Necessidade) e “O peso do meu coração” (Sintoma).
Ouça “Sintoma”: