*Por Beatriz Farias
Tem quem diga que escrever é o ato de maior coragem no mundo da arte. Outras pessoas afirmam que escrever não é arte e sim tecnica, como pedalar bicicletas ou qualquer outro hábito que quanto mais praticado te leva a perfeição. Sobra espaço ainda pra quem acredita que o escritor é um covarde escondido atrás do que não é capaz de oralizar. À possibilidade dos seres humanos de levantarem voz e expressarem sua opinião a repeito de algo, podemos chamar de crítica. Tem gente que é crítico por profissão, tem gente que perde o sono porque alguém é crítico por profissão e amanhã vai ler no jornal que o que seu novo livro é uma droga. Vale ressaltar, que para escrever uma crítica atualmente não é mais necessário trabalhar para um jornal. Existem sites, blogs, comunidades e etc. destinadas a pessoas que escrevem críticas positivas e negativas a respeito de assuntos que lhes interessam e existem pessoas destinadas a falar mal de quem escreve em sites sobre assuntos que lhes interessam “porque claramente este indivíduo não tem nenhuma base teórica”. Senhoras e senhores, a crítica, às vezes, também tem medo da crítica. Crítica, substantivo feminino que exerce a atividade de examinar e avaliar minuciosamente uma produção artística (como li na Wikipedia porque escrevo para um site e isto informa a meu respeito que “claramente não tenho nenhuma base teórica”) depende de ego. O ego de quem faz e o ego de quem tem por fazer falar de quem faz (a crítica, pra você que não sacou). E é por isso que você lê esse texto hoje. Existe uma peça e existe a necessidade de se falar da peça porque algo de bom – nesse caso – aconteceu ali. Dentro da peça existe uma mulher que escreve e tem uma relação duvidosa com as críticas e um cara com um ego bem alimentado, que critica o medo da critica, mas está apaixonado pela escrita. Os dois são estranhos. com
Uma pousada no meio do nada, vazia. Chuvinha de fundo, nenhuma conexão com a internet ou mundo exterior e vinho, claro, muito vinho. É nesse cenário que Olivia (Deborah Evelyn), professora e escritora sem fervor ao mundo on-line, conhece William (Johnny Massaro), jovem blogueiro com livro de sucesso publicado, que já chega com repertório significante a respeito da moça. O texto é da roteirista americana Laura Easeon (a tradução fica por conta de Sergio Flaksman) e a direção de Emílio de Mello. Tomados de ausências conflitantes entre a vontade e o cansaço do tipo de vida em que estavam confortavelmente alocados, o interesse assustador que ali se instala desafia a potência do estrago, tomo emprestado título de um poema da poeta portuguesa Matilde Campilho para compreender o ambiente propício: até as ruínas podemos amar nesse lugar.

Foto: Andrea Capella
A peça, que integra a edição 2017 do projeto Vivo EnCena, dialoga a todo instante com a possibilidade de seu título. Desde a primeira fala discorrida no palco é possível captar a essência de um questionamento que não cabe em interrogação, mas vai despencando em subtemas tão importantes quanto: “quem é você?”. E o estranho entra pela porta com a facilidade de quem também não sabe, porque as pessoas que não conhecemos são sempre tão mais interessantes. A diferença ente William e Olivia, é que ele já sabe o estranho que é para ele e os papeis que precisa desempenhar dentro disso pra continuar vivendo normalmente. Agora ela não, ela permanece na fragilidade do “eu sou”. Eu sou uma escritora que não deu certo. Eu sou uma professora feliz em ser professora. Enquanto ele: “não sou”. Não sou o homem do livro, não sou o cara do blog. E os dois caminham nos personagens criados dentro dos personagens, aqueles inventados da idealização do que precisam ter no outro e a indagação presente durante todo o espaço: quem é você quando não tem ninguém olhando?
As diversas camadas exploradas nos personagens ganham veracidade na interpretação de Deborah Evelyn e Johnny Massaro, que ao invés de mostrarem uma faceta certa optam pelas angustias de soar crível. As personas não são só interessantes ou medíocres ou egoístas ou arrogantes ou apaixonantes, mas são tudo isso também, alcançando a reflexão de que a superficialidade que observamos em quem não se parece conosco diz muito mais sobre nosso medo de ser raso do que qualquer outra coisa. Com sagacidade em não borrar nos excessos, Deborah traz a Olivia uma elegância desajeitada que vai abrindo o leque de maneiras de se encantar a desprezar a figura no palco. Já Johnny nos conta várias histórias pela forma que William olha para a escritora, quando a palavra não dá conta. O ator não tenta entrar em uma caixinha, ou seguir uma linha de raciocínio em sua interpretação, e é a partir desse princípio que fica fácil acreditar naquele rapaz inconveniente terrivelmente atraente.

Foto: Andrea Capella
A eficiência na direção de Emílio de Mello é notada na maneira com que apresenta o choque entre duas gerações próximas, mas que não cresceram da mesma forma. Entre a diferença dos notebooks até a dificuldade em lidar com a tecnologia do outro, o diretor propõe com sutileza a velocidade com que os meios de comunicação mudaram extraordinariamente e o quanto isso serve de combustível para aproximar ou afastar pessoas que estão em momentos diferentes da absorção dessas ideias.
O “.com” do título “estranho” nos volta o olhar sobre a forma com que encaramos a exposição atualmente. Sendo o ato de “stalkear” – do inglês “stalker”, utilizado na linguagem online para aquele que persegue/pesquisa sobre alguém em demasia – importante para o encontro dos personagens da peça, vale refletir em que ponto nos assusta e o quanto nos envaidece esse processo que cambaleia entre a curiosidade e solidão ampliadas no nosso tempo. Curioso ver o incômodo causado a princípio pelo que Olivia considera invasão de privacidade até o momento em que muda seu olhar e a situação já não é assim tão absurda. O tópico abordado na montagem confronta o quão difícil pode ser ultrapassar o limite do flerte para um cotidiano físico, trazendo ainda a tona o embate: como é formada a intimidade hoje em dia?
“Quando eu voltar a gente pode ficar junto”. É na afirmação despreocupada de William que interagimos com as múltiplas possibilidades da palavra, a afetação de dois escritores que se equilibram na probabilidade de não possuírem a mesma linguagem. E é aí que “Estranhos.com” nos mostra que é possível gargalhar do desconforto, porque o humor perspicaz não se apoia na caricatura, mas nos apresenta uma maneira convincente de rir da tristeza e da paixão como quem também se molha naquela chuva inicial com o gosto de pertencer ao momento.
Como se o cenário (cenografia por conta de Marcelo Escañuela) e a trilha sonora (as guitarras são de Elísio Freitas) anunciassem a crueza do amor e seus desdobramentos, o embaraço se esbarra no que a ausência preenche. Deborah comenta em entrevista ao programa Metrópolis que “um encontra o que falta no outro”. E talvez por isso não exista possibilidade de relacionamento enquanto os dois jogam a brincadeira de querer e pedir; falta a conexão com o que não se torna necessário, mas se faz por vontade de permanecer. É o “ficar”, William, você mesmo tinha comentado. Quem sabe nesse final, por já terem atravessado as expectativas e já experimentado seus outros desejos, tenha espaço para o encontro de fato, aquele espontâneo, sem a necessidade de máscaras mais pesadas que a própria face.
“Estranhos.com” não apresenta soluções, é uma peça sobre o tempo. O tempo de virar a página de um livro, o tempo de uma página carregando na internet. O tempo em que aguentamos o silêncio com estranhamento, quando já nos acostumamos com o ritmo rápido da peça e da vida, ficamos no meio-fio ao acompanhar aquelas pessoas no palco apenas existindo, sem emitir sons audíveis. Nosso medo do barulho ensurdecedor que a não-palavra faz. O tempo de tomar uma decisão e essa sensação de sempre, essa sensação sem nome de encontrar alívio no desconhecido. Porque nem sempre precisa ter resposta mesmo, as vezes o bom é quando é estranho.
SERVIÇO:
‘Estranhos.com’
Onde: Teatro Vivo
Dias e horários: Sexta às 21h30m/ Sábado às 21h/ Domingo às 18h
Ingressos: setor 1 R$ 70,00 (inteira) e R$ 35,00 (meia) / setor 2 R$50,00 (inteira) R$ 25,00 (meia) / sábados: setor 1 R$ 80,00 (inteira) e R$ 40,00 (meia) / setor 2 R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia)
Classificação etária: 14 anos
Duração: 80min
Temporada: de 17 de março a 15 de maio de 2017