*Por Meiri Farias
Durante a leitura matinal diária, me deparei com um ensaio da antropóloga Artionka Capiberibe no jornal Nexo. Intitulado “O Estado contra os Índios”, o texto expôs as nuances da complicada relação entre os poderes políticos e os povos indígenas. Depois da indicação de Roberto S. Peternelli pelo PSC (Partido Social Cristão, legenda conhecida por orientação conservadora) para a liderança da FUNAI ser rechaçada por militantes de Direitos Humanos, temas como a demarcação de terras, opressão cultural e mandos e desmandos da bancada ruralista – grupo do congresso formado por latifundiários que legislam em favor da ampliação de seus domínios – voltou a pauta.
É preciso lembrar-se da raiz do problema, que começa a mais de quinhentos anos na terra do Pau-brasil com a chegada de uma grande embarcação. Essa história que toda criança aprende na escola junto com as primeiras letras, é citada por outra ótica em “Papa-Capim – Noite Branca”, GraphicMSP mais recente Marcela Godoy e Renato Guedes. Durante o encontro do indiozinho com Honorato, filho da Cobra Grande, a embarcação que trouxe o fim da paz dos povos indígenas é citada como a chegada do problema. Com uma metáfora cruel e delicada, o roteiro de Marcela apresenta sua preocupação com o apagamento histórico sofrido e respeitos pela cultura dos povos indígenas. Inspirada na mitologia tradicional do vampiro europeu, com elementos folclóricos nacionais (como o personagem folclórico “Tatu Branco”, índios canibais que viviam em cavernas, segundo lendas de Luís Câmara Cascudo), Marcela cria um Papa-Capim que mantém a essência do personagem de Maurício – amizade, lealdade e coragem – mas dentro de um cenário perigoso e assustador, onde as criaturas “Noite Branca” está ameaçando sua tribo. A arte realista de Renato Guedes complementa a história trazendo, em minha opinião, uma das melhores capas das Graphics.
A metáfora em Papa-Capim é explicita: Noite Branca são homens que se separaram da natureza. “Ele luta uma guerra desleal e sem honra, tudo o que quer é avançar, dominar e destruir. Tudo faz em nome de sua sede”. A relação com o avanço desleal do homem pelo espaço de direito do índio é clara e transcreve uma luta que já se estende por séculos. Na última semana, indígenas de várias etnias fizeram protestos em Manaus pela demarcação das terras e contra a indicações de militares para a presidência da Funais. Em matéria da Agência Brasil, João Neves Galibi, que é da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), se posiciona contra a revisão ou anulação de terras indígenas assinados pela presidenta Dilma Rousseff pouco antes de ser afastada. Galibi explica que esse é um posicionamento de parlamentares, principalmente do Amazonas. O inimigo de Papa-Capim pode ser “sobrenatural”, mas reflete muito bem o antagonismo histórico entre o latifundiário e o índio.
A arte de Guedes é brilhante em revelar peculiaridades da mata e apresenta uma versão realista, mas sem deixar de ser identificável, da turminha de Papa-Capim. Mas o roteiro de Marcela realmente chama atenção, principalmente pela forma que apresenta entrelaça referências externas com a narrativa, com destaque ao adaptar trechos do poema “I-Juca Pirama”, de Gonçalves Dias, como parte do rit0 da tribo para pedir proteção. Ao ser respeitosos e reverentes, Marcela e Renato expõem a frieza e indiferença do homem branco ao se afastar do que é natural e a resistência do índio, que encontra sua força e ao se voltar ao que é seu de direito, a sua raiz. “Enquanto descreve o giro tão breve da vida que teve, deixai-me viver! Deixai-me viver”