*Por Beatriz Farias
Após diversas semanas de ausências textuais e do questionamento da razão de prosseguir tentando, eis que o cursor das coisas se ajustam ao apresentar o motivo desta segunda tipicamente paulista. A razão que sem rodeios é “Recorte!” vem, amigo leitor, com o perdão do clichê, explicada em forma da canção abaixo.
Recorte é uma palavra feito ninho, repleta de espaços por onde adentramos nas possibilidades de significados. Para além do que fazemos com uma tesoura, recortar é saber olhar. O fotografo capturou o momento, o desenhista sequestrou as formas em uma folha e o escritor fez caber vida no silencio de uma pagina em branco. Todos brincando com a capacidade de recortar o tempo. O livro de hoje abriga essa possibilidade com a tranquila precisão de flanar pela cidade, se trata do “instante fugaz em que o trivial se torna crucial. ou quando a intensidade da vida te acerta com tal violência (e) ou doçura que a única saída é correr sobre o papel.” (trecho retirado do prefácio do livro, feito por Meiri Farias).
Talita Guimarães tem 26 anos é maranhense, autora do livro infanto-juvenil “Vila Tulipa”, editora do blog Ensaios em Foco e seu mais novo trabalho é Recorte!. Na corda bamba entre a necessidade da palavra e compromisso com a realidade, Talita é “uma jornalista do essencial” (expressão Meiri Farias) enquanto é também escritora das importâncias diárias e despercebidas.
O primeiro recorte, como conta Talita, surge assim. A primeira percepção da força cotidiana abre os olhos para compreender que há vida no que de tão comum empoeirou nossa retina. Agora com os sentidos aguçados é possível, além de extrair do que de fora se absorve, entender e traspor pensamentos e casos da infância, tudo envolto de ternura mas com uma lente para a realidade que vem de um propósito: a dor precisa ser sentida porém não se trata de romanceá-la, é deixar que faça o que precisa em nós, sem apreciá-la, apenas agindo por sua significação.
Em meio a mecanização das nossas atividades, em que tendenciados a realizar as mesmas tarefas da mesma forma, somos levados a agir no mundo com semelhante descaso, Recorte! aparece como produto de resistência. Em um momento que consideramos o falar mais importante que ouvir, é revolucionário o gesto de continuar sensível ao que nos acerca. A sensibilidade da aceitação em saber que talvez não seja possível alterar o cotidiano (todo dia eu vou precisar pegar esse ônibus que me leva para o esse mesmo lugar…) mas a forma com que nos colocamos nele é escolha intransferível de nossas inquietações e disposição de ver poesia no que já soou tão banal que ninguém se deu ao trabalho de observar.
A identificação ao ler é muito possível, não apenas porque todos estamos inseridos nesse contexto de dia a dia – ainda que com funções diferentes -, mas porque a bagagem que cada um carrega é memória dos pequeno milagres que nos cercam despercebidamente, então o livro suscita o equilíbrio de acolher o cotidiano com todas as lindezas e feiuras que ele propõe. Bem como Amélie (do filme “O Fabuloso destino de Amélie Poulain”), que ao ajudar o cego a conhecer as ruas pelo sentido, entende de si o tipo de vida que quer levar. Muito do que conhecemos em nós está na forma que decidimos mostrar o mundo para os outros, e é aí que dá vontade de recortar também.
Em uma das rodas de conversa do lançamento do livro em São Paulo, Talita afirmou que escreve “para ver que aquilo existe”. A afirmação responde o que está no meio entre a responsabilidade jornalística (que ainda que comentando não ter se dado para escrever o livro, está na qualidade profissional de conduzir a narrativa) e o descompromisso do observador, porque ter “um olho no microscópio e outro olho no telescópio” (referência a uma jornalista comentando sobre Eduardo Galeano) é coisa de quem escancarou a janela de si, e então podemos ver suas paisagens e avistar – como que por meio de seu ‘oclinho’ redondo a lá Raul Seixas – a sinceridade do mundo.
E foi aí, nesse intervalo entre não ter o que passar no papel e um mar de pequenas descrições que me vem um recorte pessoal: o da presença. Chegando no final da Dica, eis que me dou conta que não contei do encontro com o livro, como normalmente faço. Talvez não caiba mesmo neste momento, mas é importante saber que é resultado de vários miúdos “nós”, pequenas junções de vontades e uma explicação que Achiles Neto fez em uma canção definindo o amor e aqui utilizo por querer dizer claramente a sua não limitação: “amor é sorte de encontrar”. A música que se chama Corte e Costura intera a presença que ainda que um pouco borrada pelos dias passados, não perde a grandeza dos detalhes. Se trata de dar importância e saber o tamanho do afeto, para o livro, as amizades e o resto da vida.
Recorte! é, para você que está descobrindo agora ou que já pela curiosidade de tê-lo mergulhado, hoje chega aqui: o olhar de espanto e grandiosidade de quem soube usar “as armas de colorir” e por isso agora pode deixar na gente as marcas de um recorte bem contado que a vida deu de presente ou porrada na cara.
*Talita Guimarães está em uma nova fase dos recortes, apresentando inéditos toda quinta-feira neste garboso espaço chamado Armazém de Cultura. Confira aqui!
*Os trechos destacados nas imagens são excertos do livro “Recorte!” (Pod Editora, 2016)