* Por Meiri Farias
Ontem voltando para casa, parei como de costume na estação Ana Rosa do metrô para fazer baldeação entre a linha verde e a azul. Parei porque não consigo fazer esse trajeto sem contemplar um pouquinho a parede imensa coberta por “O guardador de Rebanhos”, poesia de Alberto Caeiro. Mais cedo já tinha feito o mesmo ritual na saída da estação Vila Madalena, dessa vez com um trecho de “Tabacaria”, de Álvaro de Campos. Além do metrô e da poesia, o que liga esses dois acontecimentos? Caeiro, Campos, Ricardo Reis, entre outros, a multiplicidades de vozes (por vezes controversas), saem de um mesmo emissor: Fernando Pessoa, o poeta dos muitos “eus”.
O mistério do poeta de várias identidades foi o que atraiu o escritor português André Morgado, que conta que sempre foi obcecado por Pessoa “nem tanto pela escrita, porque não tinha maturidade para a entender, mas pela capacidade de multiplicação do seu Eu. Isso parecia-me algo quase de super-herói.” Junto ao ilustrador brasileiro Alexandre Leoni, de Campo Grande – MS, criou “A vida oculta de Fernando Pessoa“, uma graphic novel que conta de forma alternativa a origem dos heterônimos do poeta e que revela alguns dos segredos mais bem guardados da sua vida. O projeto está em campanha de financiamento coletivo pelo site Catarse e na entrevista a seguir falamos sobre como está esse processo e um pouco do trabalho dos dois artistas que, acredite se quiser, se conhecem apenas pela internet.
Armazém de Cultura: Em “A vida oculta de Fernando Pessoa”, vocês contam de forma alternativa a origem dos heterônimos do poeta, como surgiu essa ideia?
André Morgado: A ideia surgiu quando senti necessidade de desmistificar, junto de alguns jovens, a imagem de Fernando Pessoa que facilmente é associado a uma literatura difícil, chata e desmotivante. Perguntei-me de que forma poderia contrariar esses pensamentos e lembrei-me de articular a vida e a obra de Pessoa com o surreal que atrai muitas das pessoas, mais novas e mais velhas.
AC: Fernando Pessoa é uma figura muito importante para a literatura lusófona, tanto pela sua obra em si, quanto por todo o universo que criou a partir de seus muitos “eus”, qual é a relação de vocês, enquanto artistas, com a obra do poeta? qual o heterônimo favorito?
André: Eu desde muito pequeno que vivia obcecado com Fernando Pessoa. Nem tanto pela escrita, porque não tinha maturidade para a entender, mas pela capacidade de multiplicação do seu Eu. Isso parecia-me algo quase de super-herói. Com o avançar da idade, fui compreendendo o que lia, estudei na escola, comprei imensos livros biográficos, compêndios do seu trabalho, e fui criando uma ligação muito forte com muitas das suas reflexões. Talvez por isso seja complicado escolher apenas um heterónimo, mas posso afirmar que sempre apreciei imenso Alberto Caeiro.
AC: Ultimamente estamos percebendo que muitos artistas têm optado pelo financiamento coletivo como forma de viabilizar seus projetos, assim como o caso de vocês. O que motivou a escolha por esse formato? Vocês percebem uma mudança significativa no mercado editorial?
Alexandre Leoni: O financiamento coletivo tem se mostrado uma poderosa ferramenta de lançamento de projetos no Brasil. Para nós parece natural buscar essa ferramenta, pois é a melhor forma de testar o quanto a ideia é interessante diretamente com o público. Acreditamos inclusive que depois que fizermos essa pequena tiragem inicial, atrairemos a atenção de editoras e distribuidoras para reproduzir o trabalho em larga escala.
AC: Vocês se conhecem apenas pela internet, correto? como é realizar esse tipo de trabalho a distância? como está sendo essa experiência?
André: Sim, a internet tem sido a única ferramenta de comunicação entre nós e, até ao momento, não estivemos juntos. Mas estamos a tentar reunir condições para que o consigamos brevemente. Na minha ótica, está a ser algo bem natural até porque o desde o início que nos habituamos a trabalhar assim.
Alexandre: Eu moro em Campo Grande – MS, que não possui um mercado muito aquecido para ilustradores, portanto a internet é uma poderosa aliada para eu poder me envolver em grandes projetos como este.
AC: Durante a produção, um interfere no trabalho do outro? (O André fez o roteiro e o Alexandre a ilustração)
André: Sim, claro. Não de uma forma invasiva mas sim construtiva. O Alexandre foi fundamental para a melhoria de várias cenas que eu tinha escrito, dando opiniões que, muitas vezes, originaram até novas ideias. E, outras vezes, ele fazia um entendimento da cena que, graficamente, não resultava tão bem e alterava algumas coisas. Noutras fases fizemos uma troca de papéis e acabava eu por sugerir algumas alterações. Acho que quando iniciamos uma cooperação deste tipo, as coisas só resultam se abrirmos um pouco o nosso mundo e a nossa visão ao parceiro do projeto.
AC: A cada dia percebemos o crescimento de histórias que busquem temáticas alternativas, que fogem um pouco do estereótipo do herói clássico. O que acham da diversificação de temas no quadrinho? Que trabalhos vocês indicariam para quem se interessou pela proposta de vocês?
André: Eu confesso que na linha do nosso trabalho nunca li muita coisa em graphic novel. Posso, porém, referir alguns dos últimos comic’s que li, antes de ter começado a trabalhar no nosso projeto e que, inconscientemente, podem ter influenciado o processo de criação: Ex Machina, Y: The Last Man, Chew e Green Wake.
Alexandre: Eu gosto muito dos quadrinhos japoneses, e meu trabalho tem muita influência desse estilo, tanto no desenho, quanto na forma de contar a história. Eu indico a leitura de “Monster” do Naoki Urasawa, um excelente suspense.
Saiba mais sobre o projeto e como contribuir para o financiamento:
Bônus:
Não tem como passar direto por Fernando Pessoa.
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