* Por Meiri Farias com colaboração de Beatriz Farias
Tardezinha friorenta, chuvinha ensaiando seu ato. Aquele domingo em que o melhor a se fazer é entrar embaixo da coberta e não sair nunca mais. Mas o ingresso está na mesa, puxa vida. O Ibira é “logo ali”, não é mesmo? Ingresso na mão, puxo uma coragem não sei de onde e abro a porta para a cidade cinza, a fim de tentar espantar um pouco do cinza de uma semana apática. Foi assim que o mês de maio começou a acabar, sem muita euforia, preguiça a perder de vista e um cansaço de décadas. Mas encaramos o vento no rosto porque não é sempre que você consegue primeira fila para ver Bruno Piazza e Pedro Alterio (Bea Farias, a ligeirinha). A saudade de encontrar a música dos meninos e a saudade “d’aquele” lugar falou mais alto. A noite do dia 31 de maio costurou diversas memórias, reorganizando sentidos e afetos. Recordou histórias. Mas a primeira a ser contada é a “d’aquele” lugar.
Há dois anos começou nossa saga, primeiro show de verdade, de um artista de verdade no teatro magnífico. Novembro de 2012, lançamento do LP do Marcelo Jeneci e o início de uma história de amor com o prédio triangular. Ali percebi concretamente o poder de transformação da música, de elevação da alma e ampliação dos sentidos. Universo paralelo, espaço suspenso, fora do plano natural. Até hoje é mais ou menos essa sensação que tenho toda vez que entro no Auditório do Ibirapuera. Território sagrado.
A relação com a música dos meninos é muito semelhante. No fim do primeiro show que fui do “Música do Dois”, em fevereiro do ano passado, agradeci ao Pedro pelo lindo trabalho e disse que a música dele foi conforto, acalanto, companhia em alguns momentos que já nem me entendia mais. Em uma época onde o barulho transtorna, borra e consterna, entendi no piano do Bruno e no violão do Pedro que a música é para ser sentida. E que nem sempre precisa de letra, e que nem sempre precisa de uma compreensão imediata e absoluta, é preciso abraçar e se deixar envolver.
Esse prólogo imenso é necessário para entrar na resenha de fato, pois esse show se trata de encontros. O encontro do Pedro e do Bruno, que resultou no projeto Música dos Dois (que já lançou um disco em 2012 e recentemente o DVD Noite de Primavera), o encontro com a banda que acompanhou (os geniais Gabriel Alterio na bateria e Igor Pimenta no baixo), o encontro com os convidados que fizeram participações especiais (Vanessa Moreno e Fi Maróstica, Gabriel Sater e Neymar Dias), principalmente o encontro dos artistas com aquele palco cheio de história, literalmente um solo sagrado de um templo da música – ainda no início do show, Pedro fala visivelmente emocionado sobre a relação com o lugar e a felicidade de tocar neste palco – e por fim, a relação palpável de encontro com a música que preenche o lugar.
O show começa com uma versão surpreendente de Hallelujah, apenas o piano de Bruno, a voz do Pedro e a porta suspensa no fundo do palco mostrando a noite pelo parque Ibirapuera. Usa-se o “apenas” nesse caso para demonstrar que os sentimentos não dependem de quantidade, ao passo que na primeira música cantada imaginei que se o show acabasse ali eu poderia contar muitas histórias sobre o momento, que assim escritos deixam a síntese, mas a sensação é de quem se espantou com a grandiosidade que dois meninos tocando (n)o que sentem trás, e deixam. Deveria manter a compostura jornalística e não adjetivar o texto, mas não existe palavra melhor para definir do que “sublime”. Sublime encontro. O show seguiu com as músicas já conhecidas do público como “Sobressalto”, “Vai e vem”, “Logradouro”, misturadas à canções gravadas no 5 a Seco como “Passo a Passo”, “O sonho” e “Gargalhada”. Importante destacar “XLII”, adaptação do poema de Alberto Caeiro com participação vigorosa da banda e interpretação delicada. Confirmação do quanto o trabalho de Pedro e Bruno cresce e se confirma ao vivo. Outro bom exemplo é a canção “Ironia” – composição de Rita e Rafael Alterio, pais de Pedro. O piano de Bruno é certeiro e praticamente fala. A interpretação de Pedro é a marca de quem mergulha naquilo que canta. E o faz com autoridade.
Apenas em dois momentos a dupla se separa no palco. O primeiro com Pedro em uma interpretação solitária (e fabulosa) de La trama y el desenlace, do Jorge Drexler e Bruno acompanhado de Gabriel Alterio e Fi Maróstica forma o trio Oritá.
Confira entrevista com o trio: “As três pontas do Oritá”
Para choramingar, apenas a ausência de algumas das minhas favoritas como “Mãe e só”, “A benção” e “Pra Sophia II”, além da sensação de que tudo acaba rápido demais. Quando você se encontra com a música é um pouco estranho sair porta a fora – na chuvinha fina – e se deparar com o mundo real tão ausente de cor. Mas por dentro fica um pedacinho, do lugar, do espaço sagrado. E do encontro sublime entre o piano e o violão, que ecoou em nós a vontade de pintar a vida com a mesma alegria genuína que sentimos nessa noite, e escrever para que se lembre que não importa se já conhecemos a canção de cor, os sons e sensações, a música dos dois é esse efêmero momento de espanto entre o erudito e o nosso interior que quando mesmo quando acaba, continua.
Ouça Música dos Dois: